quarta-feira, 16 de junho de 2010

Nascer ao contrário

Nascer é morrer ao contrário. Em nosso drama humano descobrimos mil possibilidades para que possamos ser ainda mais. Quantas vezes não temos que nos encolher com tanta força para saltar para trás do muro alto que surge a nossa frente.

E naquela contração nos falta ar, nos falta coragem, nos falta até mesmo a lembrança de para onde estávamos indo. Naquele encolhimento que antecede o pulo estamos diante da morte. É frio, escuro, vazio, desesperador. E a gente se pergunta: e aquela luz toda que senti? E a vida que é um reflexo da quase morte, porque agora me faz sentir o meu lado mais obscuro.

A vida dos corajosos é repleta de mortes, repleta de momentos angustiantes para emergir uma nova instância de nós. É da dor que fazemos nascer a luz, como o foi da primeira vez no universo.

É do verbo que se fez todas as coisas. E este verbo a gente nunca se esquece. Pois ele está lá, gritado com a batida do nosso coração, dos ruídos tremeluznetes do sangue que são como folhas que atingem um corpo que corre nu numa floresta escura em alta velocidade. O corpo se dilacera, mas ao chegar diante da paisagem encantada de cachoeiras e flores, sabemos que valeu a pena.

E neste nascimento vejo nascer alguém mais humana, que aposentou a fantasia de heroína, vestiu as roupas humanas e descobriu que a verdadeira salvação é de nossa parte mais preciosa. É muita coragem  mergulhar tão fundo. E como no parto se lembre, quando doer demais, você já está lá diante da vida.

terça-feira, 15 de junho de 2010

Denaneios

E de tão apertada começo a sentir a energia se dissipar. Célula por célula se desagrega fazendo ventar minha alma, que balança de lá para cá e se desintegra. A névoa fria percorre meu ser, domina cada núcleo celular implodindo as pontes de hidrogênio. Sinto o frio do corpo sem limite, do feto sem colo entregue ao berço gélido. Encolho-me toda tentando reintegrar alguma coisa que não tenha se partido nos mil cacos lançados para o universo.

Busco em algum lugar uma voz, uma luz, um afago por entre os cabelos escurecidos. Sinto tremer a solidão soterrada que me fazia criar mil jogos para me sentir nas alturas, nos palcos mais luminosos. Olho a purulenta ferida que sangra um líquido negro e fétido. Sinto nojo, sinto medo de ser também aquela escuridão viscosa. Caminho pisando em um chão que segura meus pés e me suga para dentro. Eu tento segurar em um pequeno ramo verde, com toda a força do meu ser. Nada vejo senão um oceano escuro, lamacento em uma noite de lua nova.

Quando não me resta forças de vida, abraço tânatos. Sinto que a noite fria me engole e me beija com dentes pontudos que me dilaceram. Eu não sinto mais dor. Eu não sinto mais nada que tenha nome ou que possa suportar combinações de letras. Deito em uma superfície macia de células quentes. Tudo pulsa em uma batida de vida. Sinto calor dos meus pés, um abraço carinhoso. A luz volta em melodia. Eu escuto o chamado e agora posso voltar para meu ninho. Me enrolo como uma samambaia e em espiralantes passos volto para casa. Lá está o bebê no berço debaixo de uma janela aberta, de um ensolarado dia de julho. Fecho a janela. Visto a menina com a roupa da minha carne. Ela lança os braços para o ar como quem clama sem palavra por meu colo e me olha fundo nos olhos. Negros olhos vividos. O choro cessa. Dou-lhe o seio e acaricio sua face transfigurada pelo medo e solidão. Vejo surgir um breve sorriso de quem redescobre seu lugar e agora pode brincar de viver.

Olho tão de perto estes olhos que mergulho para dentro deles. Agora somos um novamente. Caminho repleta de vida, redonda como a lua cheia abrigando uma nova instancia de mim, sabendo que haverá novamente o momento do parto em que poderei abraçá-la com a força das entranhas, dar-lhe meus seios fartos de ternura, embalá-la nas melodias de luz e ver crescer nos campos floridos um menina de asas nos pés.

sexta-feira, 11 de junho de 2010

Grata

Eu agradeço a ti, por segurar na minha máo, neste escura floresta e me levar novamente para o ventre da Mãe.

Eu agradeço a mãe por errar tentando acertar e me amar da maneira que pode, mostrando que nunca é tarde para o reencontro.

Eu agradeço ao Pai, por me entregar o vestido vermelho e me autorizar, mil e uma vezes que eu pudesse entrar no baile da vida, sabendo que ao fim, mais uma vez, você estaria lá para me buscar e me levar para casa.

Eu agradeço ao filho, por fazer renascer em mim uma parte esquecida que o impossível fez surgir.

Eu agradeço ao companheiro por me amar desta maneira tão intensa, por suportar meus encolhimentos.

Eu agradeço a Mãe da Mãe por em sua loucura se redimir no amor que vence distâncias, demências e cura na certeza de que a vida ganha um novo sentido quando se é amado.

Eu agradeço a irmã por seguir caminhos diferentes e mesmo assim ser feita um pouco de mim.

Eu agradeço a mim, por esta coragem de me reinventar tantas vezes para fazer nascer uma nova vida em cada etapa.

Eu agradeço por viver e não apenas sobreviver. E assim me liberto para a possibilidade de alcançar aquilo que busco, nos labirintos de mim.

quinta-feira, 10 de junho de 2010

Orgasmo

Um corpo com cheiro de maresia toca a minha alma. Ele voltou para dentro de mim em movimentos oceânicos. Mal completo o orgasmo e ele já se foi novamente. Acordo assustada. Por que ele volta para meus sonhos? Por que me abandonou novamente?

Levanto da cama quente e sinto o corpo arrepiado pelo frio do inverno da minha alma. Meu coração acelera, as pontas dos meus pés congelam. Não quero mais sentir esta solidão e este gélido vento que volta e meia bate na minha porta e se instaura dentro de mim. Eu quem amo os céus e os mares com mil sóis brilhantes não consigo me entender em frentes frias sem movimento.

Deito na cama, embolo um cobertor. Penso na minha mãe. Sim, ali o ciclo de confiança se desfez. Eu quem fui nascida e abandonada em um berçário frio, cujos os braços maternais que me acolheram foram de minha avó. Os seios que mataram minha fome eram de plástico. Eu, quem nem sabia pedir, que nem sabia que meu corpo se estatelaria no chão ao me entregar, fui traída.

Tive que abraçar aquela que me amarrava, que fazia um jogo doentio de uma mente cheia de fantasmas. E ali eu aprendi sobre o amor.

Embora a confiança tenha sido novamente quebrada quando um novo ser cresceu no ventre daquela que havia sido, como eu, abandonada por sua mãe. O feto não vingou, mas a dor floresceu. Agora, aos 10 anos de idade estava nua, sozinha na floresta escura. Perdida, sem saber para onde ir.

Penso na minha irmã e seu pequeno feto. Sinto medo. Lembro da menina de dez. Medo que ela me roube novamente, que a história se repita. Ela quem chegou quando quatro meses tinha e tomou o colo, os seios de minha mãe para si e de lá nunca saiu. Ela que parece ser o reflexo da irmã que me pariu.

Eu me sinto vingada no amor sem limites daquela que não pode me acolher e agora tenta se recuperar na extensão da minha carne.

Nos olhos do meu pequeno me vejo espelhada. Aquela menina doce que via luzes e fantasmas. Aquela com medo do escuro, do silêncio profundo das vozes que nunca se calam. E em minhas escolhas eu me sinto curada, nos seios que ofereço, na presença, no carinho, no acolhimento. Como se eu mesma pudesse me abraçar e dizer: tudo bem, mamãe está aqui.

E nas cantigas que entoou até ele adormecer, canto para meu bebê dormir aqui dentro. Sem medo porque agora eu estou ali, sendo aquilo que mais me faltou para a melhor parte de mim.

Mas não posso negar que sinto medo de perder novamente aquela que agora segurou nas minhas mãos e que posso niná-la como ela mesma não soube fazer comigo. Aquela que faz diferente, com amor igual, com menos fantasmas com meu menino.

Eu sinto medo, um medo infantil do abandono. Quero fugir para bem longe, onde uma terra possa me aquecer e me apertar com tanta força que eu pare de respirar com meus pulmões. Que eu possa me encolher tão apertada que minha células desapareçam até que eu seja novamente um orgasmo infinito.